quinta-feira, 2 de junho de 2011

Nas festas pagãs

No seio da noite

No seio da cortesã

Estava toda a corte.

A mulher que ardia

Gritava e gemia

Abria-se pelo prazer

E com uma febre terçã

Acabava por padecer.

Com tanta dor

Ia se enfeitar

Para com mais um possuidor

Ter que se deitar.

E assim seguia

Sua triste vida

Esperando o dia

Que talvez consiga

Aprender a amar.

Um quê de bíblico.

Volta e meia, meu pai tem que fazer algum trabalho braçal em certas obras nos apartamentos que ele aluga. Como o tempo lhe presenteou com umas dores usuais, suas costas e joelhos não o permitem mais dar esses suspiros jovens ao levantar um saco de cimento, agora são suspiros gritantes. Portanto, ele contrata ajudantes de obras que sempre me deixam pensativa, homens que poderiam ser como meu pai era em outrora.

De alguns eu não esqueço, como o Neguin, que tinha cirrose, mas mesmo assim usava a cachaça como dondocas usam suas tarjas pretas. Um dia, após uma bebedeira majestosa, lembro-me de ver Neguin prendendo o vomito com as mãos, para não sujar o quintal, e ao liberar tudo aquilo, lembro-me do sangue que saia com aquela pasta, que nem tentarei descrever o aspecto. Que culpa ele tinha? Que outra fuga poderia ter? Não vejo críticas que possam cair sobre um preto velho que vomita sangue por insistir no que lhe mata aos poucos. O homem não tem saída, ele só procura o beco menos escuro.

Além de Neguin, teve um homem o qual nunca pude conversar, mas lembro de ver aquela figura com mãos e pés de Picasso e Tarsila do Amaral, mas de sorriso estonteante. Não houve uma vez que ele olhou para mim e não lançou aquele sorriso amável, puro, acolhedor, simpático, que sobrepunha todo o trabalho físico do dia e gemidos de dor da noite. Sinto-me muito culpada por não conseguir lembrar seu nome, porém, lembro-me de seu destino; o homem de sorriso cândido foi assassinado. Não se sabe por que nem por quem, mas levou um tiro nas costas e morreu na contramão atrapalhando o tráfego. Um dia, durante um almoço com minha mãe, rodeado por maravilhosos diálogos entre nosso silêncio e qualquer jornal local que passava na televisão, vimos a mulher desse homem protestando contra algo com os necrotérios de Brasília, tinha lágrimas banhando as faces por aquele homem que não teve direito nem de uma pós-morte decente.

Mas hoje um menino me chamou atenção, tinha 18 anos, olhos pequenos e amendoados, o sorriso de um garoto que chupou dedo até bem grande (e pode ser que chupe até hoje), vestia um boné desses que a gente ganha por ai, uma bermuda e blusa suja. Sua mão ainda era um pouco delicada, não tinha marcas de serviços braçais pesados e minha mãe disse que ele chegou em Brasília sem um cobertor para protegê-lo de nossas noites do Saara. Como sempre, meu pai começou a interrogá-lo e ele respondeu com uma voz de difícil compreensão.

“Você bebe?”

“Não, senhor. Bebi uma vez para nunca mais.”

“Por quê?”

“Porque meus irmão tiveram que me amarrar”

Ele riu, e todos os outros também riram. Pelo menos se têm uma certeza temporária que o destino de Neguin ele não seguirá. Meu pai prosseguiu.

“E seu pai, bebia?”

“Não conheci meu pai.”

“Ele morreu?”

“Sim.”

Nessas horas o clima pesa e é como se o pai do menino estivesse ali, olhando atentamente e dizendo “Olha o que você vai dizer.”

“Ele morreu de que?”

“De um tiro.”

“E quem deu o tiro?”

“Ele mesmo.”

E então riu, para quebrar o nervoso, riu o destino do pai, riu do seu destino, que o fez crescer sem uma mão masculina para pedir a benção no interior da Bahia, antes de vir passar frio em Brasília.

“Eu tinha três meses.”

“Ah, então você não se lembra dele.”

“Não.”

“Como foi que ele atirou em si mesmo?”

Aqui meu pai ponderou um pouco antes de dizer o temido “suicídio” entre os católicos.

“Ele era caçador, tinha saído para caçar 3 vezes nesse dia, mas então, a vida que caçou ele, na terceira caçada, ele nunca mais voltou.”

“E onde foi o tiro?”

“No peito”

“Será que não foi um tiro pela culatra?”

O menino ficou incomodado, sem saber o que dizer, sem saber como negar esse eufemismo da realidade de seu “painho” e confirmou com a cabeça.

“Eu só lembro da morte do meu tio, morreu caçando tatu.”

“Como alguém morre caçando tatu?”

“Ele viu uma toca, enfiou a mão e procurou, só encontrou uma cobra. Depois fui atrás da cobra e dei 3 tiros nela, o mesmo tanto de vezes que meu pai foi caçar antes de morrer.”

E então, riu de novo, aquele riso triste para disfarçar a visão da cobra que matou seu tio em instantes, seu tio que só queria trazer um tatu gordinho para casa. Depois de rir, quietou os talheres que segurava com firmeza e fome, parou de mastigar o frango e deixou quieta a montanha de comida que tinha em seu prato, ficou fitando o nada, lembrando dos dois, talvez lembrando de mainha, lembrando dos tempos na Bahia. Ele piscou, balançou a cabeça, tirou a vastidão do olhar, provavelmente porque sua barriga o lembrou da fome, e voltou a comer.

O nome desse menino era Caim, mas esse Caim não matou seu próprio irmão, a casualidade tratou de matar Adão por ele. Esse Caim não matou ninguém além daquela cobra cheia de maldade, tal qual a que corrompeu Adão e Eva, mas mesmo assim ele sofreu os mesmo castigos, teve sua vida sete vezes condenada e sua terra arrasada. Rezemos por esse Caim.